Artículos de temática libre
A construção da figura das feiticeiras como identidades de gênero no universo do Tribunal do Santo Ofício português (século XVI)
Resumo: A Inquisição Portuguesa não iniciou a repressão à feitiçaria em Portugal, pois já era objeto de intensos debates teológicos e jurídicos, incluindo o caráter de foro misto característico desse delito. No entanto, a organização progressiva do tribunal durante o século XVI integrou a feitiçaria à lista de crimes investigados pelos inquisidores, embora o foro citado tenha permanecido. Este estudo investiga as trajetórias de algumas das mulheres processadas pelo Santo Ofício por esse delito, argumentando que elas não apenas vivenciavam as suas identidades de gênero de feiticeiras por meio da fama de feiticeiras, mas também ganharam reconhecimento social e construíram espaços de relativa autonomia. Essas mulheres incluem Brites Frazão, Ana Álvares, Margarida Lourenço e Maria Gonçalves.
Palavras-chave: Tribunal do Santo Ofício português, Feiticeiras, Gênero, Século XVI.
The construction of sorceresses as gender identities in the universe of the Portuguese Court of the Holy Office (16th century)
Abstract: The Portuguese Inquisition did not initiate the repression of witchcraft in Portugal; rather, the phenomenon had already been subjected to vigorous theological and juridical debates, encompassing the distinctive mixed jurisdiction characteristic of this transgression. Nevertheless, the evolving institutional framework of the tribunal during the 16th century assimilated witchcraft into the array of offenses investigated by inquisitors, notwithstanding the persistence of the aforementioned jurisdictional complexity. This inquiry delves into the trajectories of select women prosecuted by the Holy Office for this offense. The argument posited contends that these individuals not only embodied their gender identities as witches through the notoriety associated with witchcraft but also accrued social recognition, concurrently constructing spaces characterized by relative autonomy. Among the notable figures examined are Brites Frazão, Ana Álvares, Margarida Lourenço, and Maria Gonçalves.
Keywords: Court of the Portuguese Holy Office, Sorceresses, Gender, 16th century.
La construcción de las hechiceras como identidades de género en el universo de la Corte del Santo Oficio portugués (siglo XVI)
Resumen: La Inquisición portuguesa no inauguró la represión de la brujería en Portugal; más bien, el fenómeno ya había sido sometido a vigorosos debates teológicos y jurídicos, que abarcaban la jurisdicción mixta distintiva característica de esta transgresión. Sin embargo, la evolución del marco institucional del tribunal durante el siglo XVI asimiló la brujería al conjunto de delitos investigados por los inquisidores, a pesar de la persistencia de la complejidad jurisdiccional antes mencionada. Esta investigación profundiza en las trayectorias de mujeres seleccionadas procesadas por el Santo Oficio por este delito. El argumento planteado sostiene que estos individuos no sólo encarnaron sus identidades de género como brujas a través de la notoriedad asociada a la brujería, sino que también acumularon reconocimiento social, al mismo tiempo que construyeron espacios caracterizados por una relativa autonomía. Entre las figuras notables examinadas se encuentran Brites Frazão, Ana Álvares, Margarida Lourenço y Maria Gonçalves.
Palabras clave: Tribunal del Santo Oficio portugués, Brujas, Género, Siglo XVI.
1. Introdução
As principais ondas de perseguição aos indivíduos acusados de pactuarem com o Diabo, considerando o Ocidente europeu e a atuação das instâncias civis e religiosas, podem ser localizadas temporalmente entre meados do século XVI e o avançar da segunda metade do século XVII. Isto não significa que não existam algumas variações acerca desse recorte, que podem ser localizadas entre os principais historiadores do tema. As clássicas análises de Jean Delumeau, principalmente as que compõem o seu História do medo no Ocidente, indicam a longeva associação do binômio mulheres/Diabo no processo de organização do fenômeno de caça às bruxas nesse espaço. Segundo Delumeau (2009, p. 473), aliás, este recorte é ainda mais alargado, percorrendo os séculos XIII ao XVIII. O recorte temporal de Robert Muchemblend (2001, p. 77-79) é, entretanto, um pouco reduzido, tendo localizado nos séculos XV ao XVIII a “onda de processos de feitiçaria e a floração de uma literatura por eles inspirada”, iniciada em 1428. Neste mesmo período, continua o autor, tem-se a transformação gradativa do termo vauderie, antes utilizado para designar o que seria heresia, tornando-se, enfim, sinônimo de prática de feitiçaria.
Jonathan Durrant (2007, p. XIII), por sua vez, foi mais contido que os dois historiadores franceses. Nas suas palavras, os anos de 1590 a 1631 podem ser definidos como a época em que a imensa maioria das pessoas acusadas por esse delito foram mulheres. José Pedro Paiva (1997, p. 17) encontrou no período de 1580 a 1660 a demarcação temporal do que foi “vulgarmente designado na historiografia europeia por ‘caça às bruxas’”, destacando-a como época particularmente violenta. Brian Levack enxergou nas últimas décadas do Medievo e no começo da Primeira Modernidade, um período em que boa parte dos intelectuais se ancoraram em duas noções principais acerca da “definição europeia de bruxaria”. A prática do maleficium foi uma delas, que passou a ser entendida como ato ou ritual direcionado a outra pessoa com intenção negativa, incluindo até mesmo a morte. Com o avançar do século XV, a figura do Diabo se tornou um dos principais condicionantes para a existência da “bruxaria”, consolidando a imagem do diabolismo e “da adoração do Diabo, [em que] ambos os tipos de atividades das quais as bruxas eram acusadas – magia e diabolismo – estavam intimamente relacionados” (Levack, 1988, p. 8).
Stuart Clark (2006, p. 27), ao analisar o fenômeno da bruxaria a partir da linguagem, privilegiou o estudo dos significados que foram atribuídos a ela e aos seus praticantes e considerou que “a linguagem autoriza qualquer tipo de crença”. Clark ainda destaca que, não raro, a figura do magistrado assumiu maior proeminência na construção de interpretações e penas referentes às “cabeças de magos e bruxas” (Clark, 2006, p. 697). O autor optou por analisar todo o fenômeno da bruxaria, incluindo aí o pacto diabólico, através da linguagem e da inversão. Desse modo, defendeu a existência do “demonismo e da bruxaria” como resultados de toda uma inversão do “mundo normal”, e não como produtos independentes: “eram transformações modeladas a partir do mundo com o qual todos estavam familiarizados” (Tausiet y Clark, 2010, p. 169).
Essa perseguição também possuiu uma territorialidade. Nesse sentido, Carlo Ginzburg ofereceu um importante e consolidado painel acerca da “imagem do complô” que foi construída ao longo do século XVI contra as mulheres acusadas de pactuarem com o Diabo. De acordo com o historiador italiano, as primeiras narrativas que buscavam provar a existência de seitas compostas por homens e mulheres que se reuniam em cerimônias em torno do Diabo surgiram nos Alpes ocidentais. Se, num primeiro momento, o autor percebeu uma onda de conspirações voltadas aos leprosos e judeus nesse espaço, pouco a pouco surgiriam os principais elementos que sustentaram esse fenômeno:
a reverência ao demônio, a abjuração de Cristo e da fé, a profanação da cruz, o ungüento mágico, as crianças devoradas [...] leve referência às metamorfoses, sem especificar se se trata de metamorfose em animais; vôos noturnos [...] com o desenhar-se da noção de uma ameaçadora seita de feiticeiros e bruxas (Ginzburg, 2001, p. 77).
Outros pesquisadores, por sua vez, optaram por não se preocupar tanto com uma temporalidade específica da Primeira Modernidade, mas sim na compreensão das dinâmicas de poder e dominação presentes nas sociedades em diferentes períodos históricos. Nesse sentido, a ideia de uma “feminização da bruxaria”, pautada nas teorias de gênero que ganharam força a partir da década de 1980, têm aparecido em alguns trabalhos mais recentes.
A crítica levantada por Anne Barstow sobre a necessidade de reinterpretação do fenômeno de caça às bruxas, está sustentada na ausência quase que majoritária do interesse por parte dos historiadores em analisar esse episódio a partir do gênero. Ao entender que boa parte dessa perseguição foi motivada pela crescente normatização acerca dos corpos e sexualidade femininas, a historiadora defendeu a valorização das mulheres como agentes, e não somente como vítimas, inscritas nesse fenômeno. A autora também destacou a negligência do fato de que os padrões de feminilidade prescritos às mulheres nessa época “moldaram a forma como elas eram vistas” (Barstow, 1988, p. 18). Em síntese, somente quando os historiadores se atentarem para a importância de distinguir os papéis de gênero dos significados da sexualidade, que farão sentido as avaliações sobre os motivos de as mulheres terem sido maiormente encaradas como ameaça e, mais ainda, terem delimitado as suas identidades a partir da relação com a feitiçaria.
O movimento feminista da década de 1970, afirma Katharine Hodgkin, tem um peso fundamental no modo como o tema da feitiçaria passou a ser tratado, para além da carga negativa que o acompanhava, passando a considerar a figura da feiticeira como exemplo de subversão do patriarcado. Mas, somente na década seguinte que as teóricas feministas interessadas em refletir academicamente sobre essa temática, conseguiram avançar nessa proposta a partir do gênero, enfatizando a construção das identidades a partir dos contextos sociais e reconhecendo a importância das relações de poder desiguais no modo como homens e mulheres se identificam com suas identidades de gênero prescritas e como a subversão acontece (Hodgkin, 2007, p. 185). Com o avanço dos estudos de gênero no campo das análises referentes ao fenômeno de “caça às bruxas”, uma das principais reorientações dessas pesquisas consistiu, segundo Claudia Optiz-Belakhal (2009, p. 97), em avaliar quais as condições que propiciaram a perseguição majoritária às mulheres no âmbito da feitiçaria.
As análises de Tamar Herzig focaram em desnaturalizar o fenômeno de caça às bruxas, tratando-o como construção cultural e social, cujo papel do Malleus Maleficarum foi essencial para os primeiros contornos teóricos da demonologia europeia. Considerado pela autora como um dos principais tratados voltados à feitiçaria, o Malleus, bem como as trajetórias dos seus autores – Heinrich Kramer e James Sprenger – devem ser avaliados como marco importante do início de uma “feminização da bruxaria” a partir do século XIV (Herzig, 2010, p. 64). Já Michael Bailey entendeu o século XV como época da construção e difusão do conceito de “bruxaria satânica”, além da progressiva associação entre “bruxaria e mulheres”. E, embora compartilhe da mesma noção de Herzig, os escritos de Johannes Nider – autor do Formicarius – são considerados pelo medievalista como o ponto de partida para a compreensão desse fenômeno como um processo generificado (Bailey, 2002, p. 125). A partir de então, os principais elementos que consolidaram esse processo foram conformados em uma mesma teoria: a existência do pacto diabólico se tornou condição básica para a perseguição encabeçada pelas autoridades civis e religiosas; a consolidação do vínculo entre a amplitude dessa perseguição e a crescente normatização da sexualidade e da vida das mulheres (Barstow, 1988, p. 10); e, por fim, a ampliação do contato dos indivíduos com temas voltados à “magia e ao irracional” (Roper, 2005, p. 5).
O presente trabalho não pretende, portanto, refletir sobre as estruturas de perseguição que sustentaram o fenômeno aqui citado. Busca-se, na verdade, investigar o processo de generificação das práticas de feitiçaria, partindo da documentação inquisitorial produzida pelo Tribunal do Santo Ofício Português, mais precisamente os tribunais de Lisboa e Évora –, de modo a compreender como algumas mulheres definiram suas identidades de gênero1 e delimitaram reconhecimento social a partir da fama de feiticeiras. Para isso, serão consideradas as trajetórias de Brites Frazão, Ana Álvares, Margarida Lourenço e Maria Gonçalves – todas registradas em processos inquisitoriais datados do século XVI.
Os anos de 1548, 1566, 1585 e 1592, bem como as localidades portuguesas de Évora, São Martinho de Balugães, a vila de Tomar, além da cidade de Salvador (já na América portuguesa), correspondem respectivamente aos marcos temporais e espaciais em que essas quatro mulheres começaram a ter suas vidas devassadas pelo Santo Ofício. A presença do Diabo nas denúncias realizadas contra Brites Frazão, Ana Álvares, Margarida Lourenço e Maria Gonçalves, também une as suas trajetórias. Por fim, foi nos anos de 1541 a 1595 que se consolidou a primeira onda de perseguições vivenciada no Império português contra os indivíduos acusados de realizarem pactos diabólicos, tanto em práticas mais particulares, como nas endereçadas a uma vasta clientela interessada em contar com esses feiticeiros e feiticeiras. Nesse primeiro momento, houve um considerável número de processos encetados pelas autoridades inquisitoriais lusitanas, além de ser importante sublinhar que essa primeira época coincide exatamente com as grandes repressões que marcaram outras regiões do Ocidente europeu, mais especificamente as iniciadas nos Alpes ocidentais, voltadas, nos casos de feitiçaria, principalmente contra as mulheres.2 Diante dessas considerações, pretende-se responder como, no século XVI, essas quatro mulheres construíram as suas identidades de gênero a partir da fama de feiticeiras, tanto em relação ao contexto patriarcal vigente, quanto aos usos das crenças e práticas mágico-religiosas existentes.
2. Padrões de feminilidade e a feitiçaria como subversão de gênero nos processos de Brites Frazão, Ana Álvares, Margarida Lourenço e Maria Gonçalves
Após cinco anos de investigações e inquirições realizadas pelos inquisidores Francisco Álvares Silva e frei Jerônimo da Azambuja, foi definido o consenso, em 22 de outubro de 1553, que Brites Frazão era “muito grande feiticeira e [que teria] lançado sortes com invocações do demônio para saber coisas futuras”.3 Natural de Lisboa, a antiga escrava de Pedro Corrêa e Felipa de Gomes era casada com Francisco Fernandes que, no entanto, e de acordo com as informações colhidas pelas autoridades, se encontrava cativo “em terra de mouros haverá cinco ou seis anos”.4 Também no seu processo, por diversos momentos a sua condição social foi apresentada como sendo a de “mulata”, embora não seja viável corroborar essa afirmação, uma vez que o próprio notário registrou uma dúvida de Branca Fernandes, denunciante, em que ela não sabia dizer se Brites era “mulata ou mourisca”.5 Diante da imprecisão, não seria equivocado considerar o seu passado como escravizada, bem como o fato de Brites Frazão ser mulata e mourisca, até por conta da recorrente presença desse grupo social na realização de práticas mágico-religiosas, principalmente entre as “feiticeiras alentejanas” (Bethencourt, 2000, p. 211).
Com seus 80 anos de idade, pode-se afirmar com segurança que boa parte da trajetória de Ana Álvares, também conhecida pela alcunha de Ana do Frade, esteve atrelada a uma variedade de crenças e práticas voltadas ao sobrenatural. Aliás, em uma das arguições registradas pelo notário, foi afirmado que a idade da cristã-velha chegava aos 120 anos, marcados por um casamento com Álvaro do Conteiro, falecido à época do processo, tendo resultado no nascimento de dez filhos, muitos já casados, dando netos à moradora de São Martinho de Balugães. Conhecedora das feitiçarias vinculadas ao universo das relações amorosas, atraiu uma clientela considerável, principalmente mulheres, despertando o interesse do inquisidor Pedro Álvares de Paredes, responsável por uma visitação promovida no arcebispado de Braga, em 1565.
A vida de Margarida Lourenço difere consideravelmente da estabilidade aparente na trajetória de Ana Álvares até sua prisão. No desfecho de seu processo conduzido pelo inquisidor Diogo de Souza, Margarida foi descrita pelas autoridades como uma “mulher tonta e que não [tinha] capacidade nem juízo para se proceder contra ela”.6 Nascida em Marmeleiro, uma pequena vila ligada a Sarzedas, Margarida levou uma vida nômade, passando em um período de seis anos por várias regiões como “Pedrógão pequeno e em Oleiros e Sertã e em Tornel e em Aveiro e que do Sertã viera para esta vila”. Finalmente, se estabeleceu em Tomar, com o auxílio do padre João Lopes, que a encaminhou para a casa de Maria Barbosa em 1585. Inicialmente batizada como Domingas por seus pais, Luís Afonso e Catarina Antunes, Margarida mudou de nome seguindo o conselho do Diabo, que a instruiu a adotar o nome Margarida Lourenço por considerá-lo melhor que Domingas. Essa mudança não apenas alterou sua identificação pessoal, mas também trouxe consigo uma nova identidade social entre os que a conheciam.
Em se tratando de reconhecimento, não houve uma denunciante que não associou Maria Gonçalves à alcunha de “Arde-lhe-o-rabo”, uma das alcunhas mais conhecidas entre as feiticeiras da América portuguesa. Sua reputação de feiticeira foi estabelecida desde a sua chegada a Olinda na década de 1570, após ter sido enviada de Aveiro por degredo. Sua fama estava ligada a uma clientela considerável e ao apelido que a acompanhava. Durante a Primeira Visitação do Santo Ofício à América portuguesa (1591-1595), Maria Gonçalves foi alvo de nove denúncias que a retrataram como uma mulher envolvida em feitiçaria diabólica, sendo rotulada como "vagabunda" e "ruim". Essas descrições não corresponderam a meros adjetivos, pois foram consideradas suficientes pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça para iniciar um processo de investigação sobre essas acusações.
As informações contidas em seu processo são imprecisas quanto ao tempo em que viveu em Salvador. Na denúncia de Catherina Fernandes, consta que a acusada residia na ilha de Itaparica,7 morando na casa de um “alfaiate fidalgo”.8 Corria publicamente, segundo o relato de Violante Carneira, que Diogo Gonçalves era o responsável por abrigar Maria Gonçalves nesta ilha.9 Já Isabel Antónia contou às autoridades que Maria Gonçalves estaria na casa de João Nogueira, em um lugar conhecido como “ilha das fontes”, também pertencente à Capitania da Bahia. Por fim, Catherina Fernandes confessou que, por um tempo, a dita feiticeira teria se agasalhado em sua casa. Incertezas à parte acerca da localização de Maria Gonçalves à época da visitação, fato é que, pelas ruas de Salvador, cada vez mais correu entre seus moradores a notícia de que havia uma mulher conhecida por falar e se relacionar com os diabos e até mesmo produzir uma série de rituais a partir da participação dessas figuras.
A predominância das expressões citadas, e mesmo a de que Maria Gonçalves era “mulher que fala com os Diabos”, mais do que indicar uma consonância entre as denúncias e a narrativa inquisitorial referente à detecção do pacto diabólico,10 também aponta para as formas que os diversos denunciantes se utilizaram para destacar a existência de mulheres que destoavam dos perfis aceitos socialmente à época. Reconhecer isto significa entender que o gênero atua nas diversas hierarquias e como prática insistente e eivada de atos sociais, incluindo os de caráter normatizador. Segundo Judith Butler (2016, p. 58-59), as identidades de gênero são construídas por meio da repetição, à medida que os indivíduos vivenciam, constroem e reiteram suas funções sociais como homens ou mulheres, ao mesmo tempo em que os processos de emancipação são limitados. Isso implica uma performatividade de gênero, na qual os gêneros são definidos cotidianamente e continuamente, e o corpo expressa ou produz sua significação cultural conforme o contexto em que é observado (Butler, 2016, p. 201).
Considerando o contexto em que essas mulheres estiveram inseridas, as expectativas de gênero direcionadas a elas foram marcadas por uma ampla literatura jurídica e religiosa interessada em ordenar hierarquicamente as sociedades do Antigo Regime português. A investigação a ser feita, portanto, consiste em avaliar quais os símbolos culturais referentes às mulheres foram construídos nesse período e como os conceitos normativos são organizados de modo a determinar a elas uma dada função social (Scott, 1995, p. 86). Ou seja, entende-se que as identidades de gênero são construídas cotidianamente através de performances repetidas e que a compreensão dessas performances é fundamental para entender como os padrões de masculinidade e feminilidade são definidos. Além disso, a questão da territorialidade11 da perseguição às bruxas também é relevante, assim como a ideia de uma "feminização da bruxaria" que tem sido explorada por alguns pesquisadores.
Entre os juristas da Primeira Modernidade, António Manuel Hespanha (2010, p. 41) identificou o quase que natural entendimento acerca da existência da desigualdade entre os indivíduos e como este aspecto deveria ser considerado no momento da organização das funções sociais. A essência desse raciocínio também tinha um cunho religioso, pois “tudo o que foi criado por Deus foi ordenado”.12 Prevaleceu, assim, o interesse e o empenho desses indivíduos em legislar a respeito do modelo ideal de ordenamento social, a fim de determinar os mais distintos graus que homens e mulheres teriam quanto às suas mobilidades, além de delimitar as suas funções sociais. O campo da moralidade religiosa, considerando somente o século XVI, também contribuiu decisivamente para a consolidação do padrão de feminilidade vigente no Antigo Regime português. Vide, por exemplo, a posição taxativa do frade Heitor Pinto, na sua Imagem da vida cristã, publicada em 1563, ao tratar do matrimônio e da governança no ambiente doméstico: “[...] os quais todos afirmam que a mulher deve guardar ao marido grande lealdade, e ser-lhe subjeita: e honrada dele como companheira: e que ambos se hão de ter grande amor um ao outro” (Pinto, 1958, p. 38).
O matrimônio para esse frade era encarado como “um nó que se não pode nunca desatar senão por morte”. Trata-se de uma percepção que serve de exemplo sobre como a vida conjugal era entendida como condição estruturante da ordem social almejada pela Igreja. Para os autores interessados na temática do casamento, era importante construir essa defesa sólida, não para contrapor o casamento ao celibato, mas para defendê-lo dos seus críticos, ao mesmo tempo em que se fazia necessário regular a vida conjugal. Este último ponto, aliás, estava atrelado diretamente aos conjuntos normativos voltados ao ordenamento das relações de gênero nesse contexto. A unidade do gênero (Butler, 2016, p. 69) conformou, portanto, as principais normas endereçadas às mulheres e como essa estrutura estava diretamente relacionada às funções sociais de caráter dominante que foram definidas pelos homens.
As identidades de gênero dessas quatro mulheres não devem ser compreendidas apenas pelo fato de elas serem mulheres, mas como quem foi categorizada por seus denunciantes e inquisidores como as que pactuavam com o Diabo. Elas foram, portanto, colocadas à parte daqueles que se dispunham a comparecer ao Santo Ofício para denunciar um delito amplamente associado à figura feminina. Somado a esse elemento, cada uma dessas acusadas tinha uma origem distinta, que possibilita compreender a própria multiplicidade do termo “mulher”.
A partir de diversos antagonismos e mesmo do silêncio por parte dos juristas em avaliar a condição social feminina, foi possível identificar, quando existente, uma série de diferenças a respeito dos direitos que as mulheres tinham acesso conforme sua condição financeira, sua origem, e sua condição, tendo em vista que se tratava de uma sociedade na qual as diferenças hierárquicas sustentavam as relações entre os indivíduos. As que pertenciam aos estratos mais ricos do mundo português eram tratadas de forma distinta em relação às que tinham ascendência cristã-nova, ou mourisca.
Entre as mulheres de origem mourisca, como no caso de Brites Frazão, a Inquisição contribuiu para o alargamento do léxico a respeito dessa terminologia, em que o cunho étnico deixou de ser a marca que caracterizava esse grupo, fazendo com que o olhar religioso prevalecesse e obrigasse a qualquer muçulmano liberto (independente da origem) se tornar católico.13 Assim, uma dupla condição predominou nas suas trajetórias: além de serem consideradas mouriscas, o olhar religioso prevaleceu e as obrigou a se tornar católicas, independentemente de sua origem étnica. Como mulheres, elas enfrentaram diversos estigmas sociais, incluindo a falta de segurança jurídica, a situação financeira desvantajosa e a observação e denúncia constantes da maioria.14 Mais ainda, nas palavras de Isabel Drumond Braga (1999, p. 141), os mouriscos foram “observados, espiados e denunciados pela maioria”, ao mesmo tempo em que assistiram à fragmentação de seus referenciais religiosos ou mesmo culturais.
Entretanto, mesmo sob desconfiança, a vida dessas mulheres não fugiu muito do contexto vivenciado pelas cristãs-velhas, desde que elas fossem possuidoras da mesma condição social/financeira. De todo modo, a figura da mourisca dava espaço a amplo e exclusivo conjunto de interpretações, tendo em vista a predominância de todo um arquétipo relacionado a esse grupo (Barros, 2013, p. 37). Em paralelo, essas mulheres, a maioria analfabeta, também sofriam da ambiguidade entre a obrigação de publicizar uma fé da qual não tinham familiaridade e um passado muçulmano que influenciava no modo como se portavam como mães e educadoras de seus filhos. Ademais, não se pode esquecer do outro pilar dessa composição referente à vida das mouriscas, ou seja, o modo como a sociedade portuguesa se organizou a nível dos estamentos: a pureza de sangue.15 Nesse sentido, é importante investigar como os conceitos normativos se estruturaram para determinar a essas mulheres uma dada função social e como isso se refletiu nos símbolos culturais construídos em relação a elas durante esse período (Scott, 1995, p. 86).16
Já o degredo vivenciado por Maria Gonçalves está igualmente inscrito no modo como o Antigo Regime português foi caracterizado pela organização dos estratos sociais e na própria definição da identidade de gênero da dita feiticeira. Em sua denúncia, Catherina Fernandes sublinhou o passado de degredada de Maria Gonçalves, além de corroborar a informação de que o primeiro degredo havia sido motivado por conta de uma agressão da acusada a uma outra pessoa, em Aveiro.17 Degredada por duas vezes, é, portanto, impensável descolar a vida de Maria Gonçalves das máculas decorrentes do mecanismo do degredo. Conforme sublinhou Geraldo Pieroni (2000, p. 55), o “estigma da condenação” foi condição recorrente entre os indivíduos que foram sentenciados.
Por sua vez, esses mesmos símbolos culturais que devem ser investigados de modo a visualizarmos a construção do gênero, conforme sublinhou Joan Scott, não devem ser localizados somente entre os discursos normativos produzidos nos distintos contextos e endereçados às funções sociais e morais das mulheres. A própria documentação inquisitorial é um ótimo caminho para que sejam visualizadas as expectativas de gênero direcionadas às mulheres cuja fama de feiticeira se tornou aspecto central nas suas trajetórias de vida.
3. Práticas, crenças e pacto diabólico: a feiticeira como identidade de gênero
O registro das denúncias no processo de Brites Frazão destaca a relevância do argumento anterior. Dos 28 relatos que chegaram aos inquisidores Jerônimo da Azambuja e Francisco Álvares Silva, 27 foram feitos por mulheres, abrangendo o período de 1551 a 1553, inclusive enquanto Brites Frazão já estava detida nos cárceres da Inquisição de Évora. Isso evidencia que a percepção predominante sobre a dita feiticeira foi em grande parte moldada pela visão feminina.
Em seu testemunho, por exemplo, Brites de Figueiredo afirmou que, em Évora, “habita uma grande feiticeira que se chama Frazão”, complementando, ainda, que a própria “disse a ela Brites de Figueiredo que era feiticeira e que falava com os Diabos”.18 Também informou às autoridades que Brites Frazão era “grande alcoviteira e bruxa e isto ouviu dizer geralmente a muitas pessoas nesta cidade”.19 Já na denúncia de Branca Fernandes, foi afirmado que Brites “lhe dizia que falava com os Diabos e que fazia cercos em sua casa e fora no rossio desta cidade as segundas-feiras e quartas e sextas e que chamava os Diabos”.20 Também foi por essa fama corrente pelas ruas de Évora, “por lhe dizerem que era feiticeira e que fazia para que as mulheres bem [desejassem]”,21 que Isabel Rodrigues procurou Brites Frazão, interessada em condicionar as vontades dos homens às suas. Era também seu objetivo descobrir o paradeiro de um objeto furtado, além do paradeiro do seu filho, já que “esta Frazão é mulher mui pública e mui douta nestas coisas de feitiçarias”.22 Por fim, Gerônima da Costa apresenta essa mesma graduação conferida à dita feiticeira, destacando que ela não era apenas feiticeira, mas uma “grande mestra de feitiçarias e alcoviteira”.23
Esses relatos evidenciam o peso dos testemunhos na construção do perfil de Brites Frazão, não apenas como uma feiticeira, mas como a figura central em Évora associada a poderes sobrenaturais. Sua identidade de gênero foi construída através nessas narrativas que validaram a sua reputação de feiticeira, conferindo-lhe maior importância e reconhecimento. Brites Frazão, mulher forra e distante do marido, rotulada como "mulata", "grande feiticeira", "alcoviteira" e cúmplice dos Diabos, teve sua vida intimamente ligada ao sobrenatural, especialmente ao Diabo, conforme destacado nos discursos da época, tanto seculares quanto religiosos, que associavam as mulheres a esse universo sobrenatural. Sua identidade de gênero, percebida por sua clientela, estava diretamente ligada à sua fama como feiticeira. Para as autoridades, as denúncias baseadas nesses adjetivos reforçaram um discurso estabelecido que conectava as mulheres à subserviência, ignorância e envolvimento em atividades sobrenaturais.
A expertise de Ana Álvares para com os assuntos amorosos se tornou ao longo da sua vida o elemento principal no modo como várias mulheres compreenderam a sua identidade de gênero. Ana Rodrigues, por sinal, foi uma dessas moças que a procuraram justamente pelo interesse em descobrir os motivos de não engravidar do seu cônjuge. Segundo confissão de Ana Álvares, o problema residia no passado da denunciante, quando ela era interessada em João Pires (que, posteriormente, se tornou padre), “e por não ser de sua qualidade que era homem baixo não quisera ela nem seus parentes”.24 Ao que parece, a mãe de João Pires, esperando que o filho tivesse um bom casamento, não aceitou de bom grado a recusa de Ana Rodrigues e sua família. Como represália, a dita mãe, juntamente com mais duas mulheres, teria “ligado” a denunciante, segundo o que afirmou Ana Álvares. Quando confrontou João Pires, já no período em que atuava como padre, o religioso confessou à Ana Rodrigues a participação nessa prática, dizendo “porque se lhe pudera matar o marido o fizera e que se ela quisesse ter com ele ajuntamento que ele os desfaria porque em sua mão estava isto”.25 Utilizando-se de um galo morto, partindo em pedaços seu coração, além do uso das orações invocando São João e alguns demônios, a acusada desfez o dito “ligamento”.
A predominância de expressões como “mulher que fala com os Diabos”,26 mais do que indicar uma consonância entre as denúncias e a narrativa inquisitorial referente à detecção do pacto diabólico, também aponta para os argumentos utilizados por essas denunciantes para destacar a existência de mulheres que destoavam dos perfis aceitos socialmente à época. As acusadas não eram apenas mulheres, mas mulheres categorizadas como as que se relacionavam com os diabos – relação que indica quase como uma forma de distanciamento das mulheres que se dispunham a comparecer ao Santo Ofício para denunciar um delito amplamente associado à figura feminina. No campo da teoria das diferenças (Rago, 2012, p. 50), as mulheres feiticeiras são conceito e produtos das sociedades nas quais estiveram inseridas.
Ana Álvares foi reconhecida como uma feiticeira especializada em questões amorosas e relacionamentos interpessoais, lidando com os problemas enfrentados por indivíduos que não se casavam por motivos puramente sentimentais. Essa imagem predominou nas narrativas daqueles que a procuravam, bem como dos que a denunciaram perante a visitação. Philippe Ariès (1985, p. 159) observou a relativa ausência de homens discutindo publicamente o amor, indicando uma mistura de indiferença, ignorância, pudor e sigilo em relação a esses assuntos. No entanto, para as mulheres que buscaram Ana Álvares, falar sobre sentimentos, experiências amorosas e vida conjugal era algo comum. É relevante notar que a própria acusada, ao enfrentar os inquisidores, negou apenas a associação com o Diabo, confirmando sua habilidade em lidar com práticas mágico-religiosas relacionadas ao amor. Sua identidade de gênero estava estreitamente ligada a assuntos que normalmente seriam considerados privados, mas que se tornaram temas de interesse público graças à sua atuação.
Embora tenha sido considerada “mulher tonta” pelas autoridades eclesiásticas e inquisitoriais, Margarida Lourenço esteve longe de ser retratada a partir desse adjetivo quando são analisadas as narrativas dos seus denunciantes. A ex-cativa Maria da Gama era ama do clérigo João Lopes quando foi chamada pelo Promotor para ser a primeira a testemunhar sobre Margarida Lourenço. Ao iniciar seu relato, a denunciante acabou demonstrando como era pública a mudança do nome da acusada, de Domingas para Margarida, embora não tenha explicitamente relacionado esse fato à presença do pacto diabólico.
No entanto, o modo como a escrita do seu relato foi registrado pelo notário indica que houve uma associação entre o nome “Margarida Lourenço” e os episódios que descreviam as práticas diabólicas da acusada. Num primeiro momento, quando a denunciante começa a narrar sua relação com a acusada, o nome “Domingas” é citado:
e por a dita Domingas se recolher em casa do dito padre João Lopes onde ela testemunha mora e a testemunha lhe perguntou que lhe dissesse alguma coisa do que falava lá na diabólica que desejava de o saber porque queria também lá ir e dizendo lhe outras palavras para tirar dela o que sabia.27
Quando as cerimônias são contadas com maiores detalhes por Maria da Gama, o nome “Domingas” é substituído por “Margarida”, já no contexto em que, segundo a denunciante, a acusada teria efetivado o pacto com um dos demônios presentes em Val de Cavalinhos: “e que os demônios andavam em hábitos desfiados com grandes cabelos de bodes e que lhe dissera mais a dita Margarida que um demônio a levara de sua roupa e que se achara daqueles unguentos que ainda lá houvera de tornar e que havia três anos que se não confessava e que se viera da sua terra”.28
Na acusação do padre João Lopes, o único momento em que o nome da acusada é citado, é após todo o relato ter sido narrado pelo denunciante, sendo mencionada a participação da “mulher conteúda na petição”29 em cerimônias diabólicas envolvendo as figuras de Pajavão, Barbazão e Rodilha, afirmando que ela se relacionava frequentemente com esses demônios. Já nas suas considerações finais, comentou ao inquisidor sobre o fato de que a acusada “não queria que lhe chamassem senão Margarida”.30 Por fim, nas denúncias de Manuel Gonçalves e Felipa Mendes, o nome “Margarida Lourenço” predomina em todo relato, o que indica a possibilidade de os denunciantes ou mesmo autoridades terem naturalizado a relação que esse nome tinha junto à presença dos diabos.
Seguindo a linha interpretativa de Carlo Ginzburg (2001, p. 21), o modo como a denúncia de Maria da Gama foi registrada pelo notário diz muito sobre os mecanismos ideológicos que permeavam os relatos envolvendo os pactos diabólicos. Por isso a importância de considerar que essa mudança de nomes, no contexto em que as cerimônias são o objeto central da narrativa, tem relação com o interesse dos inquisidores em confirmar que era Margarida Lourenço, e não a Domingas, a grande responsável por realizar práticas diabólicas.
Toda essa narrativa construída entre denunciantes e a acusada foi remetida à Inquisição de Lisboa em 28 de janeiro de 1585, resultando num parecer intitulado “Informação sobre a doidice desta Margarida Lourenço”. Nesse documento baseado nos relatos de Domingos António, guarda do cárcere, e António Luís, alcaide, as autoridades chegaram à conclusão de que Margarida Lourenço não se encontrava em seu juízo completo, inviabilizando quaisquer investigações a respeito das denúncias vindas de Tomar. “Mulher doida” e “mulher tonta” foram os adjetivos que estiveram presentes nesse parecer e são indícios de como esse contexto religioso português contribuiu consideravelmente para a manutenção de adjetivos endereçados a formar a noção de mulher a partir da sua desconstrução também a nível psicológico.
Por essa razão, não é equivocado apontar a existência de um padrão de atitudes ou mesmo um arquétipo na medida em que a descrença ou a busca por desacreditar os relatos, a partir da falta de juízo e capacidade entre as mulheres, não foi prática exclusiva de uma autoridade ou, como será analisado nos processos adiante, de um único Tribunal. A desconfiança e o descrédito em relação às mulheres chegaram também ao Tribunal do Santo Ofício, conforme observou Jaime Gouveia (2018, p. 227). A documentação analisada por esse autor diz respeito em grande parte às denúncias e aos processos envolvendo o crime de solicitação, ou seja, em que os clérigos eram acusados de abusarem das penitentes no contexto da confissão. Ao destrinchar as narrativas referentes a esse delito, percebeu como grande parte das decisões dos inquisidores que questionaram a autenticidade das acusações das mulheres foi sustentada em valores patriarcais e misóginos. Mais do que a busca por favorecer os religiosos, acobertando episódios que pudessem ferir a própria Igreja Católica, predominou um “sistema de pensamento misógino, responsável pelo arquivamento de uma considerável cifra de denúncias”, em que as estruturas judiciais não estiveram imunes às “maquinações intencionais e falhos nos juízos que faziam sobre determinados testemunhos femininos” (Gouveia, 2018, p. 244).
A análise dessa documentação permite, assim, compreender que a presença do Diabo era um tema de interesse das autoridades e era frequentemente associada à participação das mulheres. Além disso, as autoridades reproduziam adjetivos que depreciavam as narrativas acerca desse delito, reforçando o discurso misógino predominante na época.
Sob um primeiro olhar, essa dupla atitude pode ser interpretada como prática contraditória por parte da Inquisição. O uso dos processos como ferramenta para investigar a presença do Diabo entre os homens e as mulheres, indica, primeiramente, o interesse dos inquisidores em manter entre a população um ambiente de vigilância para com quaisquer rituais que indicassem essa presença. No entanto, o intuito em reafirmar esse contexto de perseguição foi influenciado pelo modo como a tradição religiosa portuguesa se posicionou nas discussões demonológicas do período. Era necessário manter o ambiente citado, mas, tão importante quanto, era consolidar o entendimento de que os poderes do Diabo possuíam limitações.
Sendo assim, os debates iniciados por Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, séculos antes da própria delimitação da demonologia no universo europeu, sustentaram de forma considerável a teoria em torno do poder “meramente ilusório do demônio” (Bethencourt, 2004, p. 177), em que boa parte dos letrados portugueses também compartilharam. Maria Benedita Araújo (1994, p. 48), por exemplo, conferiu um peso maior da filosofia tomista no cerne das discussões empreendidas por esses letrados tendo em vista o alcance que os pressupostos de Tomás de Aquino tiveram entre esse grupo a respeito da figura do Diabo. As interpretações dos inquisidores portugueses nesses processos seguiram, portanto, um misto de entendimento capaz de fazer com que a presença do Diabo fosse algo concreto entre os indivíduos, associando-o quase que intrinsecamente à versão negativa do conceito de mulher, sem que fosse uma figura inalcançável ao combate dessas mesmas autoridades.
O entendimento do padre João Lopes de que Margarida Lourenço tinha relações com os Diabos foi posterior ao período em que o religioso ofereceu estadia a acusada. Num primeiro momento, “por lhe parecer que ela era pobre e virtuosa e que fazia nisso serviço a nosso senhor / a agasalhara alguns dias em sua casa”.31 Somente após Margarida lhe contar a respeito do que ocorria em Val de Cavalinhos,32 por conta de algumas desconfianças do padre, que ele resolveu não mais abrigá-la sob o mesmo teto. Embora sendo somente esta denúncia em que é visível como o gênero de Margarida Lourenço foi interpretado sob um duplo viés, virtuoso e demonizado, importa destacar como o maniqueísmo não foi característica marcante entre os denunciantes. E, mesmo quando somente as cerimônias e práticas diabólicas foram relatadas e relacionadas ao gênero da acusada, nem sempre o intuito foi o de demonizá-la. Maria da Gama, por exemplo, procurou Margarida Lourenço sob o intuito de também participar das cerimônias vivenciadas pela ré. Por essa razão, pediu à Margarida que “dissesse alguma coisa do que falava lá na diabólica que desejava de o saber porque queria também lá ir”.33
A análise enfocada nos sujeitos e nas dinâmicas individuais revela que, além das relações de poder do inquisidor evidenciadas nas narrativas, outros elementos influenciam a interpretação dos indivíduos nas denúncias. No caso de Margarida Lourenço, seu gênero foi interpretado pelas autoridades como indicativo de sua suposta falta de capacidade, reforçada por adjetivos pejorativos que buscavam desacreditá-la intelectual e socialmente, resultando na rejeição das realidades descritas pelos denunciantes. Já as testemunhas ofereceram interpretações menos simplistas do seu perfil, especialmente ao considerar a sua participação em cerimônias envolvendo atos sexuais com demônios em troca de poderes, contextualizando essa atuação de maneira mais ampla. O que indica a complexidade da construção da noção de pacto diabólico, que não se limitou apenas ao contexto erudito. Resultou de um “complexo de trocas culturais e religiosas que acabaram por formular a feitiçaria como heresia, objeto, portanto, da repressão do Santo Tribunal” (Calainho, 2008, p. 209). Mais ainda, entende-se que as relações de gênero foram mais amplificadas e complexas entre os (as) denunciantes por não partirem de uma percepção maniqueísta e reducionista presente entre os inquisidores.
A intrínseca relação da presença do Diabo com o modo como determinada identidade de gênero foi interpretada pelos indivíduos também pode ser avaliada no processo de Maria Gonçalves. Na primeira denúncia feita diante do visitador referente à fama de feiticeira da acusada, Isabel Monteiro Sardinha afirmou que a conhecia pela alcunha de “Arde-lhe-o-rabo” e por ser “mulher feiticeira e ruim”. Essa percepção da denunciante decorreu de um episódio no qual o mestre da galé em que ambas viajavam, agasalhou em sua cabine somente Maria Gonçalves, levando a denunciante a crer que apenas por feitiços tal situação ocorreu.34 Já no entender de Margarida Carneiro, o perfil de Maria Gonçalves também estava vinculado à alcunha citada, além de ser “mulher vagabunda [...] [tendo] conta com o Diabo e com ele dormia e tratava”.35 Catherina Fernandes, por sua vez, contribuiu para que a relação entre a acusada e os diabos alcançasse maior consistência, reproduzindo uma fala na qual Maria Gonçalves teria dito à Domingas Gonçalves:
porque eu ponho-me a meia noite no meu quintal com a cabeça no ar com a porta aberta para o mar, e enterro e desenterro umas botijas e estou nua da cinta para cima e com os cabelos, e falo com os Diabos e os chamo e estou com eles em muito perigo”.36
Violante Carneiro também disse que Maria Gonçalves era “mulher vagabunda”, afirmando que as práticas diabólicas da acusada ocorriam mediante a oferta de parte de seu corpo em troca de “certas coisas para fazer feitiços”.37
As falas de suas denunciantes também podem ser compreendidas como indícios do respeito que elas tinham para com a dita feiticeira, chegando até mesmo a se tornar relativamente um poder paralelo, representado por Maria Gonçalves, ao poder temporal e espiritual encarnado na figura do então bispo. E a alcunha que a acusada carregou consigo durante sua vida, “Arde-lhe-o-rabo”, é exemplo de como as denunciantes a enxergavam numa posição distinta das demais mulheres. Essa expressão, ressalta-se, esteve relacionada diretamente às práticas mágico-religiosas que diziam ser de responsabilidade de Maria Gonçalves. Na confissão de Caterina Fernandes, tem-se a explicação da alcunha: “a dita Maria Gonçalves lhe deu uns pós dizendo-lhe que eram de um sapo torrado e que lhe custaram muito trabalho fazê-los e que fora ao mato falar com os Diabos e que vinha moída deles”.38 Essa versão foi, inclusive, referendada pelo Visitador ao citá-la na sentença final.39
Ao se dedicar a estudar as mulheres da classe popular e suas atividades econômicas na Paris do século XVI, Natalie Zemon Davis (1990, p. 67-68) observou uma tendência na utilização de apelidos por essas mulheres. Alguns exemplos eram “la capitaine des vaches” (capitã das vacas) e “la reine d’Hongrie” (rainha da Hungria), utilizados por mulheres que lideravam unidades domésticas em Lyon. Essa frequência de alcunhas levou a autora a questionar se essa não seria apenas uma peculiaridade, mas sim uma forte relação entre as mulheres na vida pública e o uso de apelidos. Desse modo, a sua pesquisa permitiu compreender como as mulheres desse estrato social encontraram maneiras de se inserir na esfera pública e como foram percebidas pela sociedade da época.
Portanto, é viável compreender que as denúncias que atrelaram a presença dos diabos à acusada, no qual a própria Maria Gonçalves supostamente dizia que tais figuras lhe davam muito trabalho, deixando-a “moída, descabelada”, tenham alimentado os imaginários construídos a respeito da sua vida. A alcunha de “Arde-lhe-o-rabo” foi tanto uma forma de reafirmar que Maria Gonçalves era a chamada “feiticeira diabólica”, quanto de tornar público uma mulher que se diferenciava das demais por conta da capacidade em intervir nos destinos a partir do diálogo com o Diabo. Assim, a presença de alcunhas nos casos citados vai além de apenas marcar uma estigmatização social. Esses apelidos se tornam representativos da intimidade e, às vezes, da autoridade atribuída por um grupo à suposta feiticeira, estando diretamente ligados à interpretação de seu gênero por aqueles que conviveram com ela e até mesmo por quem a denunciou. Para esses indivíduos, não haveria a Maria Gonçalves feiticeira se ela não estivesse associada a essa alcunha, às práticas mágico-religiosas e à autoridade e respeito que emitia.
A associação de mulheres à reputação de bruxas confrontou as expectativas de gênero estabelecidas para suas vidas, tanto no âmbito discursivo e normativo quanto entre aqueles que se dispuseram a denunciá-las diante de diversos inquisidores. A partir da teoria das diferenças, as mulheres consideradas feiticeiras são entendidas como conceitos e produtos das sociedades em que viveram.
4. Considerações finais
Este trabalho argumentou que as trajetórias de mulheres como Brites Frazão, Ana Álvares, Margarida Lourenço e Maria Gonçalves são exemplos significativos de mulheres que definiram uma identidade de gênero subversiva através do envolvimento em práticas mágico-religiosas. Suas conexões com o sobrenatural por meio da feitiçaria não apenas contribuíram para seu reconhecimento social relativo, mas também para a construção de espaços de autonomia. Essas mulheres desafiaram as expectativas de gênero da época, tanto as delineadas nos tratados morais e religiosos quanto os estereótipos sobre feiticeiras.
A presença do Diabo caracterizou a fama e as práticas narradas por denunciantes e acusadas ao longo de seus respectivos processos, mas longe de representar a grande ameaça recorrentemente propagandeada pela Igreja Católica. O papel atribuído ao Diabo nas identidades de gênero dessas mulheres submetidas a processos por feitiçaria constitui um elemento de significativa relevância. Como delineado previamente, a presença do Diabo frequentemente se entrelaçava com a participação feminina em práticas de feitiçaria, manifestando-se como um reflexo da perspectiva misógina predominante na época. Esta perspectiva concebia as mulheres como particularmente suscetíveis à influência do Diabo, tornando-as, portanto, mais propensas a se envolverem em atividades demoníacas.
Todavia, é crucial destacar que a pesquisa evidenciou que essas mulheres instrumentalizaram sua reputação como feiticeiras e a suposta associação com o Diabo como estratégias para obterem reconhecimento social e construírem redes de solidariedade com outras mulheres. Este comportamento desafiador por parte delas subverteu as normas de gênero da época, muitas vezes manifestando-se na recusa em se conformar com os papéis tradicionais de esposa e mãe, e na escolha de viver de maneira independente ou em comunidades exclusivamente femininas. Ao adotarem tal postura, essas mulheres estavam, de fato, forjando suas próprias identidades de gênero e contestando a visão misógina prevalente que as retratava como frágeis e suscetíveis à influência do Diabo.
A análise dos processos revelou uma complexidade nas dinâmicas de gênero, destacando a diferença entre as visões dos denunciantes e dos inquisidores. Isso sugere que as identidades de gênero dessas mulheres foram moldadas não apenas pelas concepções misóginas das autoridades inquisitoriais, mas também pelas relações de gênero mais amplas na sociedade da época.
Além disso, entende-se que as análises dos processos possibilitaram refletir que a busca por reconhecimento social e o universo da heresia foram elementos nem sempre visivelmente demarcados entre os indivíduos. As discussões acerca dessas trajetórias revelaram essa ambiguidade, na qual as mulheres tiveram peso considerável, e viabilizam enxergar as inúmeras possibilidades de ressignificação do discurso misógino sobre a feitiçaria, que ganhou novos significados conforme os interesses em jogo dessas feiticeiras e as demandas protagonizadas pela clientela que recorria ao sobrenatural para a solução de seus problemas.
Enfim, acredita-se na necessidade de os pesquisadores avançarem nesses pressupostos para ampliar a consciência de que as relações de gênero são capazes de explicar muito mais do que a mera relação casual da mulher com a presença do Diabo. Conclui-se que é fundamental que os pesquisadores explorem essas questões para ampliar a compreensão das relações de gênero na Primeira Modernidade, indo além da simples associação entre mulheres e o Diabo. Isso implica em considerar como as práticas mágico-religiosas foram moldadas por padrões de feminilidade e como essas mulheres desafiaram tais padrões ao longo do tempo.
Fontes
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Notas
Recepção: 11 Abril 2023
Aprovação: 12 Abril 2024
Publicado: 01 Setembro 2024