Comunicaciónes
Psicanálise e feminismo: algumas reflexões sobre a mulher enquanto Outro
Resumo: Este artigo promove um debate sobre alteridade e gênero na psicanálise com base em teorias feministas. O feminismo traz questões fundamentais à psicanálise, exigindo a revisão de alguns de seus pilares – sustentáculos de sua práxis -, e a ampliação da leitura psicanalítica. Se por um lado, a psicanálise segue contestadora e atuante, por outro lado, uma prática psicanalítica sem reflexividade crítica, pode desconsiderar o contexto social e o efeito discursivo da posição ocupada pelo sujeito. Assim, a partir de leituras feministas, interrogar-se-á a práxis (a um só tempo teórica e clínica) psicanalítica, colocando luz nos problemas que se revelam nos tratos com questões de gênero, a saber: o lugar da Mulher (não-toda/Outro sexo) e do Homem (Todo fálico) e o heteropatriarcado conjugado a este.
Keywords: Psychoanalysis, Feminism, Listening, Patriarchy, Other.
Psychoanalysis and feminism: some reflections on the woman as the Other
Abstract: This article promotes a debate on otherness and gender in psychoanalysis, based on feminist theories. Feminism raises fundamental questions to psychoanalysis, requiring the revision of some of its principles - the cornerstones of its praxis - in order to expand psychoanalytical reading. While on the one hand, psychoanalysis exercises a challenging and engaged practice, on the other hand, a psychoanalytical practice without critical reflectivity may not consider the social context and the discursive effect of the position occupied by the subject. From feminist readings, psychoanalytical praxis (both theoretical and clinical) will be examined, shedding light on questions regarding gender issues, namely: the place of women (not-all/Other sex) and men (phallic) and the heteropatriarchy conjugated to it.
Palavras-chave: Psicanálise, Feminismo, Escuta, Patriarcado, Outro.
1. Introdução
Neste artigo trazemos algumas reflexões advindas de teorias feministas para o debate sobre a prática psicanalítica e a importância da reflexividade na escuta.1 Para iniciar o debate proposto é fundamental primeiramente apontar que gênero e sexualidade elaborados aqui devem ser vistos em relação a outras categorias sociais como raça, classe, idade, entre outros (Mountian, 2017) e devem ser interrogadas nos seus contextos sociais e históricos. Portanto, o que é concebido por gênero é historicamente situado (Haraway, 2009), incluindo as relações de poder que compõem esse entendimento (Ahmed 2000, Butler 2008, Foucault, 1977). Situar a noção de gênero nas relações de poder sociais e históricas aponta para a necessidade de entender a política dessas dinâmicas.
Assim, é importante situar a produção de conhecimento da própria psicanálise, tomando a política da e na psicanálise. Política é muitas vezes tomada somente como política institucional. Nesse sentido, a política da psicanálise pode ser analisada através das formações das escolas, das práticas e suas dinâmicas. Porém, a compreensão de política no seu sentido amplo, incorporando as relações de poder no cotidiano, permite também analisar os efeitos discursivos da psicanálise. Enfatizamos a possibilidade da contribuição da psicanálise na desconstrução e subversão dos discursos hegemônicos, no entanto, para isso, a análise crítica se faz fundamental, pois, senão, há o risco da manutenção das relações desiguais de poder. Lembrando, com Castoriadis (1991), que política é intrinsecamente ligada ao contexto histórico e social de sua emergência e dinâmica.
2. O pessoal é político
Leituras feministas colocaram em xeque a tradicional divisão política, na qual o campo do político era o referente somente ao espaço público, ou seja, masculino, enquanto o doméstico seria relacionado ao feminino. O termo o “pessoal é político”, cunhado nos anos 70, trouxe à tona o alargamento da noção de política, agora não mais restrita à política instituticional/governamental, mas também à política do cotidiano. Levantamos dois aspectos em relação ao “pessoal é político”, primeiro como a vida cotidiana também é política, e segundo, sobre a política da representação, por exemplo, da representação da mulher e grupos minoritarizados (LGBTTQIs, negros, imigrantes, entre outros) na esfera pública.
Silvia Federici (2013) aponta como, a partir da história dos movimentos e lutas feministas, houve uma redefinição do que é política e uma recusa em igualar o político apenas à esfera do governo e da lei, ampliando para um espaço maior essa noção, ou seja, incluindo o pessoal, as relações familiares, na casa, nas relações sexuais, nas relações entre homens e mulheres. Para Federici (2013) a separação entre público e privado foi instrumental em esconder o trabalho não assalariado que as mulheres realizam. Qual é a condição material de uma sociedade democrática? Federici aponta que o capitalismo precisou desvalorizar o trabalho reprodutivo; e nessa perspectiva, houve o controle do dinheiro e do corpo da mulher. O caráter político da casa é desvelado: “Não apenas o trabalho doméstico foi imposto às mulheres, mas foi transformado num atributo natural da nossa psique e personalidade feminina” (Federici, 1975, p. 77).
Nesta direção, podemos lembrar que Angela Davis (2018) dá ênfase ao termo-mostra: heteropatriarcado. O patriarcado, atualizado e re-criado a partir da expropriação que de algum modo fez coincidir a legião produtora da prole (significado romano do termo proletariado) e as mulheres. A partir da configuração capitalista de propriedade privada, a heteronormatividade patriarcal impôs, por suas leis, modos de ser bastante regulados, fazendo-os parecer natural ou estrutural.
Outro aspecto importante para considerarmos é da relação entre política, representação e linguagem. Butler (2008) traz alguns apontamentos em relação a esse debate:
Por um lado, a representação serve como termo operacional no seio de um processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por outro lado, a representação é a função normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representá-las completa e adequadamente pareceu necessário, a fim de promover a visibilidade política das mulheres. Isso pareceria obviamente importante, considerando a condição cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente não representada (Butler, 2008, p. 18).
Porém, há dois aspectos importantes da linguagem e da representação. Primeiro, como aponta Butler (2008) “o próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes” (p. 18), ou seja, não há um sujeito uno mulher. Assim como, poderíamos dizer, não existiria um sujeito uno – homem, ou de qualquer outra designação. Segundo, como atenta ainda Butler (2008) “os domínios da ‘representação’ política e linguística estabeleceram a priori o critério segundo o qual os próprios sujeitos são formados, com o resultado de a representação só se estender ao que pode ser reconhecido como sujeito” (p. 18).
Seguindo o pensamento de Foucault, Butler (2008) aponta como “os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que subsequentemente passam a representar”. E continua dizendo: “O sujeito feminista se revela discursivamente construído – e, pelo próprio sistema político que supostamente deveria facilitar sua emancipação” (p.18). Dessa maneira, há alguns desafios colocados em jogo: por um lado da representação da categoria mulher, e por outro, da importância da desconstrução da própria categoria, que é muitas vezes naturalizada em discurso.
3. Reflexões feministas sobre psicanálise: a mulher enquanto Outro
Partindo destes desafios colocados nessas compreensões feministas, vemos que a posição da mulher (e outros grupos) é muitas vezes colocada como Outro no discurso. Tomando esse enfoque, indagamos quando na psicanálise a mulher é assim concebida. A leitura com enfoque numa epistemologia feminista analisa criticamente os efeitos discursivos das teorias e práticas. Nesse sentido, a psicanálise tem sido um ponto importante de debate: por um lado, teóricas feministas apontam o contexto patriarcal nas teorias psicanalíticas e os perigos da reprodução de desigualdades sociais, como visto em alguns estudos sobre travestis - e o risco da patologização de travestis e pessoas trans -, e por outro lado, autores feministas apontam que a psicanálise pode denunciar relações patriarcais e coloniais e assim desenvolvem estudos para proporcionar uma ampliação do campo discursivo psicanalítico, tendo o seu potencial contestador em relevo.
Na análise da mulher como Outro, ou o não-todo como mulher, interrogamos efeitos discursivos desta posição. Nesta direção, Frosh (1995) ressalta o dito de Lacan “a mulher não existe, a mulher não é toda” (Lacan, 1985, p. 15) como relacionado à posição da “mulher”. “Lacan argumenta que a organização da cultura essencialmente patriarcal, ou propriamente dito a estruturação fálica da linguagem, significa que a mulher toma seu lugar como o Outro [...] dado a sua presença pela sua exclusão” (Frosh, 1995, p. 291).
Não-toda na linguagem significaria aqui fora do poder. Assim, por exemplo, a noção de patriarcado é vista como funcionando em todos os níveis (consciente e inconsciente). Como Stacey (1993) aponta “o trabalho feminista nas dimensões psíquicas do patriarcado explorou as formas nas quais as estruturas mais amplas da sociedade operam nas relações de parentesco na formação das identidades individuais” (p. 57).
Considerando a gama de debates em relação a feminismo e psicanálise, destacamos, ao longo do texto, alguns pontos críticos do constructo psicanalítico. Para isso, destacamos a necessidade, primeiro, do entendimento que a psicanálise está inserida num contexto social e político específico (Parker, 2011, Frosh, 1999). E, segundo, da importância de uma constante reflexividade (Mountian, 2017a) para as práticas e concepções teóricas.
Reconhecemos que, não obstante a construção das críticas aqui explicitadas, a psicanálise também trouxe importantes debates em relação à mulher. Freud inicia seus estudos com as mulheres, e mais especificamente, com as histéricas, oferecendo uma escuta num contexto em que havia uma associação discursiva da mulher com a histeria, com a loucura. A psicanálise tem um importante potencial emancipatório como visto em várias de suas formulações, como da importância do desejo, o trabalho do inconsciente, entre outras. Pensamos, enfim, ser relevante revisitar alguns aspectos da práxis psicanalítica frente à noção feminista de política, iniciando com a análise da mulher como Outro, para depois promover pontos de debate sobre a prática psicanalítica, em particular da escuta e reflexividade.
4. A mulher é Outra (é mistério)
Simone de Beauvoir (2016 [1949]) já havia feito análises críticas considerando o contexto social e histórico da noção e posição da mulher. Enquanto ao homem dá-se o lugar discursivo de Sujeito (absoluto), à mulher resta um lugar Outro.
Essa ideia foi expressa em sua forma mais explícita por E. Levinas em seu ensaio sobre Le Temps et l'Autre. Assim se exprime ele: "Não haveria uma situação em que a alteridade definiria um ser de maneira positiva, como essência? [...] A alteridade realiza-se no feminino. Termo do mesmo quilate, mas de sentido oposto à consciência (Levinas apud Beauvoir, 2016 [1949], p.13).
O trecho de Levinas, destacado por Beauvoir, traz a referência ao lugar de alteridade - de Outro, dado pelos homens às mulheres. No referido texto de Levinas, além da referência à alteridade, encontramos a asserção sobre a não complementariedade entre os sexos e a aproximação do feminino com o Real, o que seria usado por Lacan nos apanhados fenomenológicos de suas fórmulas da sexuação. O aforismo “não há relação sexual” parece herdeiro desta ideia de Levinas, segundo a qual não haveria todo (ou complemento) entre os dois sexos (homem e mulher).
Beauvoir tece, então, um alerta: a notação da mulher como mistério é adotada sob o ponto de vista do homem e, mais ainda, coloca a mulher fora do campo da consciência de si: “Quando escreve que a mulher é mistério, subentende que é mistério para o homem [...] uma afirmação do privilégio masculino” (Beauvoir, 2016 [1949], p.13).
Tomando esta análise de Beauvoir, notamos similaridades com o que foi construído por Lacan em suas fórmulas da sexuação: ali, temos o sujeito, no lado todo fálico (denominado lado Homem) e o objeto, no lado não-todo fálico (denominado lado Mulher – lugar Outro). Mesmo que a proposta seja da posição do sujeito na divisão sexual (posição de gozo e semblante), podemos indagar o quanto esta nomeação, na práxis, pode (re)produzir a posição de mulher na sociedade patriarcal e falocêntrica.
A posição de Outro (para a mulher) pode ainda ser vista na ideia da mulher como mistério, enigma. O que quer uma mulher?, pergunta ícone de Freud, abrira o campo psicanalítico para a sexualidade feminina.
"A psicologia é incapaz de solucionar o enigma da feminilidade" (Freud, 1996 [1933], p.117).
Ou
"Determinada parte disso que nós, homens, chamamos de 'o enigma da mulher', pode, talvez, derivar-se dessa expressão da bissexualidade na vida da mulher" (Freud, 1996 [1933], p. 130).
Na análise desta posição, podemos notar que o mistério é colocado como alteridade, mas essa alteridade é afirmada mulher. O mistério, portanto, se faz mistério para um homem (e consequentemente a sexualidade masculina, ao invés de se apresentar pela ordem do enigma, da falta e da contradição, aparece em sua máscara de consciência).
Se existe, para a psicanalista, alguma ordem de responsabilidade sexual, seria importante ponderar o quão enigmática é a sexualidade para cada sujeito afetado pelo Real do corpo.
Lacan, após Freud, outrossim colocou o mistério sob o signo da sexualidade feminina. Assim, indagamos: por que atrelar o Real e o não-todo (o Outro) a este significante – Mulher?
Lacan incorreu no binarismo sexual (heteronormativo e cisgênero) para discorrer sobre a sexuação. Desta feita, é relevante analisar os efeitos de tais divisões, quando tomadas enquanto categorias essencialistas. Entre os anos 60 e 70, Lacan elaborava algumas de suas formulações sobre as mulheres lançando mão de dizeres de Aristóteles e da Bíblia, assim como de figuras como Don Juan (que toma as mulheres uma a uma), de pares heterossexuais (o homem que faz uma trança no cabelo de uma mulher; a loucura que seria mais familiar às mulheres etc.), de Totem e Tabu, e dos aspectos patriarcais e heteronormativos de universais propostos por Lévi-Strauss em relação à troca de mulheres (que procuram garantir a proibição da homossexualidade e asseguram a dominação masculina). É preciso frisar, no entanto, que durante este período a segunda onda do feminismo já se mostrava forte o bastante para ser vista e considerada por ele.
A pequena diferença – sexual – considerada pela psicanálise, diz Homem e Mulher, sendo a Mulher, barrada, posta como radicalmente Outra, como o que não faz conjunto (tal como os homens fazem). Muito embora possamos encontrar em Lacan um trecho no qual lemos que sujeitos (independentemente do sexo biológico) podem se inscrever em qualquer um dos lados das fórmulas da sexuação, bem como argumentos lógicos que, aí sim, tornam o não-todo um ponto de orientação política (subversiva em relação às políticas absolutistas), vestir o não-todo com o significante Mulher e multiplicar exemplos que colocam o Homem como sujeito desejante e a Mulher como objeto de desejo daquele, assim como outras fenomenologias dos mitos da heteronormatividade cotidiana, enfraquece a força que poderia haver em uma leitura da sexualidade humana não redutível às caricaturas.
Em Corpos que Importam, Butler nos alerta sobre o perigo do apoio de teorias em um antagonismo sexual não problematizado, o que “involuntariamente instala a matriz heterossexual como uma estrutura permanente e incontestável da cultura” (Butler, 2019, p. 49). Ainda com Butler, podemos perguntar como poderia a psicanálise “conservar sua força explicativa” sem permanecer na “norma heterossexual” e em sua “consequência misógina”? (p. 49), desafiando leituras essencialistas sobre gênero e sexualidade (Butler, 2008), raça (Fanon, 2008; Seshadri-Cooks, 2000), classe (Federici, 1975; Benhabib e Cornell, 1987) e outras categorias sociais.
Retomando o heteropatriarcado ressaltado por Davis (2018), notamos que a misoginia, assim como outras violências, são possíveis efeitos dessa forma de estrutura. Sustentando lugares normatizados para homens e mulheres, a psicanálise pode também correr o risco de reproduzir essas relações de poder.
Se as críticas de gênero já foram tão contundentes e diretas a esses aspectos problemáticos da psicanálise, por que esta permanece, tantas vezes, fazendo ouvidos moucos? Por que continuar respondendo de modo binário e heteronormativo?
5. Freud e o Édipo feminino
Estamos habituados a empregar 'masculino' e 'feminino' também como qualidades mentais [...] dizemos que uma pessoa, seja homem ou mulher, se comporta de modo masculino numa situação e de modo feminino, em outra. [...] isso é apenas ceder à anatomia ou às convenções (...) Quanto mais se afastarem da estreita esfera sexual, mais óbvio se lhes tornará o 'erro de suposição' (...) Se agora os senhores me disserem que esses fatos provam justamente que tanto os homens quanto as mulheres são bissexuais, no sentido psicológico, concluirei que decidiram, na sua mente, a fazer coincidir 'ativo' com 'masculino' e 'passivo' com 'feminino'. Mas advirto-os que não o façam. (Freud, 1996 [1933], pp. 115-116)
Ambos os sexos parecem atravessar da mesma maneira as fases iniciais do desenvolvimento libidinal. (Freud, 1996 [1933], p. 118)
Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo. (Freud, 1996 [1933], p. 130)
Esses trechos foram cuidadosamente retirados da Conferência Introdutória XXXIII, de Sigmund Freud, acerca da Feminilidade. Neles podemos encontrar asserções interessantes sobre a não necessidade de se agrupar atividade-e-masculino e passividade-e-feminino; a equivalência, relativa ao gênero, quanto ao desenvolvimento libidinal e, muito instigante, a clara colocação da libido como indistinta: a libido não é masculina nem feminina!
A seguir por aqui, esses passos poderiam ser consideráveis na construção de um corpo teórico não refém da anatomia, identidades engessadas ou mesmo concepções essencialistas de gênero. Uma libido não limitadora, que, por não ser masculina nem feminina, suspenderia qualificações estereotipadas. Não obstante, curiosa e contraditoriamente, em alguns momentos, o mesmo Freud aparece atravessado pelo discurso médico sobre as mulheres daquele período histórico (Ayouch, 2015, Saavedra e Nogueira, 2006). No mesmo texto, encontramo-no ainda realizando malabarismos para justificar a "inferioridade sexual original" (Freud, 1996 [1933], p. 131) das mulheres. Sigamos: Deficiência genital, inferioridade, exclusividade na castração (os meninos temem a castração ao notar a falta de pênis nas meninas, estas, sim, castradas), trocas de objetos de amor e identificação.
A menina, no Édipo, faria movimentos extras. A menina precisaria abrir mão da mãe, enquanto objeto, e de sua "zona erógena". Para um "curso normal" do desenvolvimento, a menina precisaria passar da mãe para o pai e assim sustentar a heteronormatividade que o Édipo masculino naturaliza. (Um parêntese importante: Butler desenvolve a análise em que a bissexualidades2 freudiana é heterossexual, a saber, a resolução “normal” da bissexualidade é uma normatização necessariamente heterossexual).
O "Édipo feminino" vem, desta maneira, baseado num discurso heteronormativo no qual em algumas passagens a mulher é vista como inferior e desvalorizada. Estes sustentados pela tão inflada "inveja do pênis".
O fato de que as mulheres devem ser consideradas possuidoras de pouco senso de justiça sem dúvida se relaciona à predominância da inveja em sua vida mental [...] Também consideramos as mulheres mais débeis em seus interesses sociais e possuidoras de menos capacidade de sublimar instintos do que os homens... (Freud, 1996 [1933], pp. 133-134)
Ele, entretanto, alerta-nos:
Se os senhores rejeitarem essa ideia como fantasiosa e considerarem idée fixe a minha crença na influência da falta de pênis na configuração da feminilidade, estarei, naturalmente, sem apoio (Freud, 1996 [1933], p. 131)
Poderíamos considerar essa crença pura fantasia (como as crenças costumam ser) ... Uma ideia fixa situada naquele contexto. No entanto, torna-se importante situar essas afirmações, sendo discursos encontrados em sociedades (heterocis)patriarcais e falocêntricas. Assim, o contexto em que as mulheres viviam e as posições sociais que eram ocupadas por elas, devem ser consideradas na análise de sua psicologia e comportamento, senão há o risco em manter essa posição de poder, também na psicanálise. E aqui questionamos, como e de que posição podemos ouvir o sujeito que é colocado na posição de Outro?
6. Trauma da humanidade
[...] conforme Adler, os conflitos internos e suas decorrências são a "triste consequência do preconceito social da superioridade do elemento masculino" - mais precisamente a triste consequência da posição atual da mulher na sociedade e, sobretudo, na ordem familiar [...] isso nos leva a dizer o seguinte, se formos a fundo: que a formação da posição atual da mulher na ordem social e familiar foi, na história humana, o trauma mais geral da humanidade - do qual derivou o sofrimento interior da humanidade em si mesmo (Gross, 2017, p. 124).
Otto Gross3 propõe que a posição da mulher na ordem social e familiar constitui o grande trauma da humanidade. Ao mesmo tempo, faz eco à denúncia da "superioridade do elemento masculino" como peça chave para os conflitos sexuais que nos atingem enquanto humanos. Para Gross, há uma função em manter a posição superior masculina na psicanálise.
Podemos acompanhar que a psicanálise precisou, muitas vezes, da “sustentação da superioridade do elemento masculino” (Gross, 2017, p. 124), e mais especificamente, da sustentação mítica do pai. Vejamos como essa posição apareceu não apenas em Freud, mas também em Lacan:
É efetivamente isso que escrevo e pelo qual seria fácil, relendo Aristóteles, detectar a relação com a mulher, precisamente identificado por ele com a histérica - o que, aliás, coloca em ótima posição as mulheres de sua época, porque ao menos elas eram estimulantes para os homens -, que lhe permitiu, é um salto, instaurar sua lógica pelo vocábulo pan, panta, em vez de ekastos, para designar a proposição universal afirmativa, bem como a negativa, aliás. Enfim, toda essa pan-tomima da primeira grande lógica formal está essencialmente ligada à ideia que Aristóteles fazia das mulheres [...] Isso não impede que a única fórmula que ele não teria permissão de pronunciar fosse todas as mulheres (Lacan, 2009 [1971], p. 144).
Vale analisar com mais cuidado esta citação de Lacan com base em Aristóteles, pois Lacan estava, naquele momento, iniciando a construção de suas fórmulas da sexuação, partindo da lógica formal. Ao conceber o que designou por lado todo, referiu-se ao silogismo do filósofo grego e àquilo que este nomeou Universal Afirmativa, qual seja: ‘todo Homem é mortal’.
Lacan, ao conceber suas fórmulas da sexuação, chamou o “lado todo” de “lado Homem”. Outrossim, afirmou não existir Universal para a Mulher, colocando este significante como próprio ao “lado não-todo”. Sua justificativa, explicitada na citação acima: a ideia que Aristóteles fazia das mulheres. Sabemos das qualificações em falta ressaltadas por Aristóteles acerca das mulheres. Literalmente: fêmeas são fêmeas por ausência de qualidades.
Para Lacan, ‘todo homem é mortal’ (a universal afirmativa) não seria replicável às mulheres. O que Aristóteles pensava das mulheres autoriza o não há universal do lado “Mulher”. Não há toda-Mulher. A Mulher (não-toda) é então localizada enquanto Outro sexo. E acrescenta com base na Bíblia a localização da mulher nas escrituras: “Nos chamados mandamentos do Decálogo, a mulher é assemelhada aos citados animais, da seguinte forma: Não cobiçarás a mulher do próximo, nem seu boi nem seu asno” (Lacan, 2009 [1971], p.128).
Pois bem, o explícito deslizar (metonímico) da mulher ao objeto animal parece tocar em determinadas operações discursivas, ainda vistas em alguns contextos, nas quais a mulher aparece como propriedade do homem, assim como a terra e os animais.
Retornando a Gross, parece-nos problemático quando psicanalistas não notam as implicações da localização dessa fenomenologia, colocando então como estrutura universal aspectos situados e que repetem uma longa história patriarcal. Torna-se, portanto, fundamental uma revisão crítica dessa formulação de estrutura e o decorrente questionamento do uso dos significantes Homem e Mulher para esses lugares discursivos.
Outro aspecto que vale ressaltar é como Lacan apoia o universal masculino (o todo Homem) no mito trazido por Freud. Segundo o mito freudiano de Totem e Tabu, o pai da horda é aquele que goza de todas as mulheres e interdita seus filhos que, em levante, abatem o pai e devoram-no. Lei instaurada, ninguém tocará na mãe. Continua Lacan:
É preciso o assassinato do Pai ter constituído - para quem? Para Freud? para seus leitores? [...] É curioso que tenha sido preciso eu esperar este momento para poder formular uma assertiva assim, qual seja, que Totem e Tabu é um produto neurótico, o que é absolutamente incontestável, sem que por isso eu questione, em absoluto, a verdade da construção (Lacan, 2009 [1971], p. 150).
Pois bem, desenhemos o quadro de Lacan: por um lado, o que ele chama de Mulher, nas fórmulas da sexuação, baseia-se, originalmente, no entendimento de Aristóteles sobre as mulheres (além de referências da Bíblia, da mulher objeto de troca de Lévi-Strauss ou da mulher uma a uma de Dom Juan), ou seja, a impossibilidade de toda-Mulher não é prova histórica de um trauma humano, mas "estrutura" que impede a universal afirmativa para aquelas. Por outro, o lado Homem, a exceção e seu decorrente universal, justificam-se por um mito neurótico.
Lacan bem nos ensinou que a fantasia neurótica guarda uma verdade mentirosa. Um dos pontos de uma análise séria, justamente, a travessia dessa verdade fantasmática que faz realidade para o sujeito neurótico. Por que, então, continuarmos tomando um mito individual e neurótico como estrutura universal? Por que, enfim, devemos partir do pai forjado pelo mais caricato papel neurótico?
Se isso é uma fantasia neurótica, não seria interessante simplesmente atravessá-la? Ponderando que, por conta da histórica "superioridade do elemento masculino" e do subjugado lugar do "elemento feminino" (trauma da humanidade), a tendência neurótica é constituir o pai e tomar a mulher como objeto (como um asno) - mesmo que às vezes disfarçada de valor por enigma ou inefabilidade? Fazer do Homem esse Universal (Sujeito) e da Mulher essa alteridade (Outro), não seria persistir nas relações de poder encontradas na sociedade?
Por que continuamos a falar sobre as fórmulas da sexuação com esses termos: Homem e Mulher? Não seria muito mais interessante pensarmos nos significantes ‘todo’ e ‘não-todo’? Em uma orientação ao não-todo, sobremaneira apostaríamos nas singularidades. E, quiçá, a psicanálise poderia retomar algo subversivo nesse campo. Se a ênfase for posta na lógica não-toda e não nos encontros pré-determinados de sexos, os enlaçamentos amorosos e/ou sexuais e a não-relação, a não complementaridade, dar-se-ia entre sujeitos, não importando, de maneira alguma, qual gênero está em qual posição.
7. Reflexões finais sobre escuta e reflexividade
Tivemos como objetivo tomar aspectos críticos assinalados nas teorias psicanalíticas como pontos para reflexão. A partir das análises levantadas, alguns desafios foram colocados, mais especificamente, como é possível escutar aquele colocado como Outro no discurso. A psicanálise trouxe importantes contribuições sobre as teorias e práticas nas relações sociais, tanto na importância do desejo do sujeito, quanto das possibilidades de escuta do outro/Outro e suas possibilidades emancipatórias (Parker, 2011). Destacamos, nessa desconstrução, a importância em revisitar a psicanálise criticamente e ampliá-la.
Estudos feministas desenvolveram a noção de reflexividade para pesquisa e prática, partindo do entendimento de ciência como historicamente situada (Haraway, 2009; Harding, 1996). Estes estudos (feminist standpoint) destacam a importância em circunscrever as condições sociais dos grupos minoritarizados e como as categorias sociais operam dentro disso. Assim, aspectos tidos como naturais e autoevidentes são questionados, como visto em relação a gênero (Mountian, 2017a). Nesse sentido, o processo de pesquisa (Oakley, 1981) e de análise faz parte deste contexto.
Nessa direção, somamos também a crítica de Spivak sobre enclausuramentos epistemológicos hegemônicos, e como se pode escutar quem é posto como Outro, uma vez que a análise é também situada. “Pode o subalterno falar?” (Spivak, 2010).
Esta é uma questão fundamental à prática psicanalítica, como é possível, portanto, escutar aquele designado como alteridade, e aqui apontamos dois aspectos: primeiro, a importância em se considerar o contexto social do sujeito e também os efeitos dessa posição na sociedade, por exemplo, os efeitos da transfobia no sujeito. E, segundo, a importância da constante reflexividade da analista, considerando sua posição de analista, incluindo as categorias e interseções entre gênero, raça, classe, idade e sexualidade (Mountian, 2017a). Aqui temos uma tarefa importante, tanto em considerar o contexto social do sujeito, quanto da própria psicanalista. Implicando uma “avaliação crítica (...) do processo e recursos interpretativos” (Nogueira, 2001, p. 50).
Ahmed (2000) elabora criticamente os encontros coloniais na construção do Outro, apontando a necessidade em se interrogar as relações na fundação de tais encontros, nos quais o suposto Outro permanece submetido e reificado a uma posição específica discursiva, ou seja, de “Outro”. O questionamento sobre a fundação desses encontros pode proporcionar a análise crítica dessas relações de poder, possibilitando outros espaços discursivos para a emergência do sujeito. Nessa via, as relações de gênero e sexualidade são importantes para serem consideradas na análise, na reflexão sobre as possibilidades discursivas do sujeito generizado e sexualizado numa sociedade patriarcal (Mountian, 2019). Spivak aponta a necessidade da representação do sujeito sem mediação: “se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade” (Spivak, 2010, p. 82). Assim, a contínua reflexividade crítica se faz fundamental à analista.
As reflexões desenvolvidas nesse texto exploraram a posição teórica da mulher enquanto Outro e como na análise este posicionamento pode ser tomado enquanto o que é ser mulher. Outrossim, indagou-se a localização do homem enquanto ‘todo’, e suas decorrências binária e heteropatriarcal. Tais distorções incorrem no risco de manter a mulher (e outros colocados nesse lugar) como Outro, como um mistério corporal e somente o homem como sujeito desejante. Desvelar estes lugares e as relações que compõem este espaço discursivo é fundamental para a escuta psicanalítica, visando possibilitar a emergência (da escuta) do sujeito (de desejo) e suas singularidades.
Referências
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Notas
Recepción: 30 julio 2019
Aprobación: 06 julio 2020
Publicación: 04 septiembre 2020
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